segunda-feira, 11 de março de 2024

O meu homónimo - o lugre "ANA MARIA"

 -

Sempre tive uma predilecção muito especial pelo lugre "Ana Maria", porque, de facto, tem o mesmo nome que eu, porque foi dos mais antigos da nossa frota pesqueira, porque era muito elegante e porque a ele associo um oficial de cá de Ílhavo, de quem era conhecida, aparentada e amiga – o Capitão José Fernandes Pereira Júnior, mais conhecido por Capitão Zé Lau (1879-1971) muito sui generis.

-

Em bom andamento…

O “Ana Maria” – o “ex-Argus”, construído em Dundee, em 1873, era um veleiro elegantíssimo. Adquirido à Parceria Geral de Pescarias pela Firma Veloso, Pinheiro & Companhia, da Praça do Porto, participou na campanha de 1939 e seguintes.

De exíguas dimensões, cerca de 40 metros de comprimento, de 8 de boca e 4 de pontal, tinha uma capacidade de pesca de apenas 5.000 quintais.

Curioso, as rectas finais de vida do “Ana Maria” e do Capitão Zé Lau confundiram-se.

No Jornal do Pescador de Outubro de 1955, foi dada a grande notícia de que, num belo dia do anterior mês de Setembro, o primeiro navio da pesca do bacalhau à linha a entrar no Douro, foi o lugre “Ana Maria”.

“Em viagem directa da Terra Nova, chegou ao Douro o navio "Ana Maria", tendo fundeado junto do cais do Bicalho”.

-

 
O “Ana Maria” entra no porto de Leixões…pelos anos 50
- 

Foi com grande júbilo que a gente ribeirinha da capital do norte aguardou a chegada do veleiro. As famílias dos pescadores mostravam a sua impaciência, enquanto se procedia à manobra da atracação.

Logo foram beijos, risos, abraços, recordações evocadas e notícias trocadas, numa demonstração de ternura entre pessoas queridas que não se viam há seis meses.

Entretanto, o capitão do barco, também de Ílhavo, Sr. José André Alão deu as boas notícias de que o seu barco se portara maravilhosamente e estava apto para continuar na faina do bacalhau. A viagem fora óptima e os porões vinham completamente carregados. Foi também do Ana Maria que se lançou o alarme à navegação sobre o fogo do Ilhavense Segundo, quando se encontrava a 60 milhas do lugre incendiado.

O Capitão Lau nasceu em Ílhavo a 5 de Dezembro de 1879, tendo ido para o mar aos catorze anos, como era normal, à época.

Deixou o mar em 1958, com a provecta idade de 79 anos.

Quem, de idade á madura, não se lembra da sua figura física? Baixote, velhinho, de cabelos muito alvos, rapioqueiro e sempre bem aperaltado, mas de feitio difícil, com quem era preciso saber lidar. No meu casamento, em 1965, para que fora convidado, com uma vetusta idade, fartou-se de dançar. Gravei-o na memóris…

Entre os postos de moço, piloto, imediato a capitão, lá foi sulcando os mares, no meio de muitas peripécias e alguns naufrágios, em tempos bastante difíceis, passando pelo Lusitânia III (futuro Terra Nova), Maria Preciosa, Paços de Brandão, Alcíon, Silvina, Delães (torpedeado e afundado por submarino desconhecido, em 1942), Labrador, Oliveirense, Infante de Sagres III e Paços de Brandão. De 1952 até 1958, ocupou o cargo de imediato no “Ana Maria”, ano em que o velho lugre do Porto naufragou, com água aberta, a 7 de Setembro.

-

O lugre “Delães”, em alto mar, cerca de 1940
-

O Capitão, Sr. Joaquim Agonia Vieira, de Vila do Conde, e o “nosso imediato”, entre os seus quarenta tripulantes, foram salvos pela escuna costeira norte-americana “Spencer”, que os entregou posteriormente a um navio espanhol. O velhinho Zé Lau, pelos seus 79 anos e pernas enfraquecidas, já teve de ser auxiliado, nestas andanças e mudanças de embarcação para embarcação. Abandonou, então, a vida do mar.

O lugre cumprira o seu destino com 85 anos e o imediato contava menos seis.

-


Em primeiro plano, o lugre “Paços de Brandão” e o “Ana Maria”; pela popa, o “Aviz” e, semi-encoberto, o lugre de quatro mastros, que sabemos ser o “Senhora da Saúde” (in A Campanha do Argus, de A. Villiers)

Em terra, ainda duraria até aos 91 anos (até 1971), a saborear o aconchego do lar e seus familiares, com invejável memória e vivacidade inusitada.

-

Capitão Zé Lau, já de idade avançada
-

O seu temperamento prejudicou-o, por vezes na sua vida profissional, mas era amigo do seu amigo e por ele os colegas tinham grande estima.

Na última viagem que efectuou, numa entrevista que deu a um repórter do “Primeiro de Janeiro”, em 14 de Abril de 58, contou as suas histórias de mar, revelando: – o veleiro mais antigo da frota portuguesa é o Ana Maria e eu o tripulante mais antigo.

E assim o “Ana Maria” e Capitão Zé Lau ficaram na memória dos illhavenses.

 -

Ílhavo, 11 de Março de 2024

-

Ana Maria Lopes

sexta-feira, 8 de março de 2024

Nunca é tarde

 -

Zé António Paradela

José António Bóia Paradela nasceu em Ílhavo, em 30 de Outubro de 1937, filho de José António Paradela Júnior e de Rosa de Jesus Bóia. Foi casado com Matilde Ventura Nunes Henriques, amor de uma vida.  Adoptaram dois filhos, o Marco e o Jorge.

Subiu a pulso. Foi embarcadiço na pesca do bacalhau, tendo feito uma campanha de moço, em 1955, no navio-motor “Lousado”. Depois, bolseiro da Fundação Gulbenkian, durante cinco anos, formou-se em Arquitetura, na Escola Superior de Belas Artes.

O seu curriculum vasto compreendeu várias disciplinas e tipologias, desde as arquitecturas, especialmente habitação colectiva e equipamentos, ao ordenamento do território e ao planeamento urbanístico. Nesse aspecto, podemos dizer que na ilha da Madeira, teve um papel fundamental.
No planeamento urbanístico, a sua área de trabalho preferida foi o POTRAM (1990) – Plano de Ordenamento Territorial da Região Autónoma da Madeira, em que   coordenou uma vasta equipa pluridisciplinar.

Para Ílhavo, a sua terra natal, fez o projecto dos Paços do Concelho, o Centro Cultural da Gafanha da Nazaré, o edifício antigo dos Bombeiros Voluntários, que adaptou ao Centro de Religiosidade Marítima e o Jardim Henriqueta Maia.

Usava como pseudónimo literário Ábio de Lápara.

Na escrita, deixou-nos dois livros de crónicas e pequenas estórias sobre os lugares onde cresceu e conviveu “Uma Ilha no Nome” e “A Rua Suspensa dos Olhos”, e um livro de textos poéticos, “O Livro das Santinhas de Apegar”.

O Zé António era um homem bom, honesto, culto, sem pretensões e com humor. E a juntar a tudo isto – um grande arquitecto e urbanista. Apresentou-nos, em Ílhavo, com saber e boa vontade o livro “Moliceiros” – A Memória da Ria”, em 2012.

-

Apresentação de “Moliceiros – A Memória da Ria”
- 

Depois de doença prolongada, a que resistiu estoicamente, faleceu em 21 de Fevereiro de 2023, com 85 anos.

A título póstumo, foi-lhe concedida a medalha de ouro, de mérito cultural, em 2023, pela CMI.

Ílhavo, 8 de Março de 2024

Ana Maria Lopes

-

quinta-feira, 7 de março de 2024

João Juff, o "capitão preto" de veleiros, Comandante de uma "tripulação de brancos"

 -

João Juff

Vem isto a propósito do título que encima uma notícia/entrevista de 7 de Abril: “Para a pesca do bacalhau / O capitão preto [expressão sublinhada] seguiu hoje no ‘Navegante’ para a Terra Nova a comandar uma tripulação de brancos e contou-nos a sua história” .

Quem era então João Juff? Segundo a ficha/declaração destinada a marítimos matriculados para as campanhas bacalhoeiras existente no Museu Marítimo de Ílhavo, preenchida em 24 de Novembro de 1938, o seu nome completo era João Juff Tavares Ramos.

-

Ficha do grémio
-

Nascera em 5 de Setembro de 1891 em São Vicente de Cabo Verde, filho de Tomaz Juff e de Joana Tavares. Casado com a ilhavense Silvina de Jesus Ramos desde 12 de Novembro de 1913, residia no Largo da Capela, em Ílhavo. Livre da condição militar, começara a ir aos bancos da pesca do bacalhau em 1908 mas interrompeu a profissão de marítimo em 1914, por motivo de estudo.

Ora o nosso homem surge-nos com grande destaque no “Diário de Lisboa” de 7 de Abril de 1949, sob o título “Para a pesca do bacalhau / O capitão preto seguiu hoje no ‘Navegante’ para a Terra Nova a comandar uma tripulação de brancos e contou-nos a sua história”. Antes de reproduzirmos o que ele declarou, lembremos o que tinha sido a sua carreira de marítimo com responsabilidades de navegação até aí. Juff fora piloto por cinco vezes e imediato outras tantas, os postos de maior importância abaixo do de comandante, em lugres apenas à vela ou nalguns casos com motor. Após essas longas 10 viagens, na campanha de 1949 seguiria pela primeira (e afinal única) vez como comandante. Desta feita, do “Navegante II” , elegante lugre de casco de madeira e três mastros, feito em 1912 em Fão, ao qual tinha sido dado em 1936 um motor.

De tão significativa a introdução biográfica do capitão feita no jornal, transcrevemo-la na íntegra: “E é bem engraçada a história deste capitão Juff, do ‘Navegante II’! Tem cinquenta e tantos anos e é um cabo-verdiano dos quatro costados [não era assim tanto, como veremos], espadaúdo, de cor retinta, modesto e tímido, respeitado e amado da sua tripulação. Pela primeira vez, um capitão de cor vai à Terra Nova a comandar um grupo de brancos… Isto para um país de colonialistas, onde as leis não põem parágrafos restritivos, fechando as portas aos seus filhos de todas as latitudes e meridianos, seja qual for a tintura da sua pele – não é de admirar. Mas só é de distinguir, porque o caso é o primeiro.” Acontece que, segundo Juff, seu pai teria ido parar a Cabo Verde na qualidade de carpinteiro de obras públicas. Mas a mãe, dita de nascimento sul-africano, chamava-se Joana Tavares… Juff parecia bem ligado ainda à terra de nascimento. Dizia ele: “Tinha eu 13 anos, quando um dia vim para a Metrópole. Deixei a querida terra cabo-verdiana, as suas mornas tão doces, os seus tristes escarpados, tão gratos ao meu coração, quando em 1904 o sr. dr. Samuel Maia me trouxe para Ílhavo (…) era um bom médico. E também escrevia (…). Era (…) muito meu amigo. Vim para seu paquete e ouvi os seus conselhos (…). Meti-me a praticante de farmácia e, como Ílhavo é terra de pescadores e São Vicente de Cabo Verde é terra de mareantes, também um dia me fiz ao mar como moço de bordo.” Juff embarca em 1906 no “Luanda”, ganhando pela safra 90 mil réis, quando um pescador recebia 160.000. Depois, torna-se cozinheiro. E, já casado com uma ilhavense e pai de duas filhas, a conselho do seu protector Samuel Maia tira o curso de piloto no Porto e em Aveiro. O depoimento do capitão Juff terminava com alusão à morte recente de uma das suas filhas mas com alguma esperança: “É a primeira vez que vou à Terra Nova como capitão de um barco. Conheço aquilo tudo como as minhas mãos. A vida, sem dúvida, é agora menos dura. Temos o Mundo mais perto de nós, a rádio leva-nos notícias dos nossos, o médico vela por quem trabalha e os motores deixam descansar os músculos do homem. Este ano já não poderei ouvir a voz da minha filha, morta há um mês. Não posso, é como quem diz: ouço-a na minha saudade.”

Ora a vida de marítimo na pesca do bacalhau configurava-se de facto extremamente dura. Não eram raros os encalhes, incêndios e naufrágios, fora acidentes pessoais a bordo dos lugres e arrastões ou dos pequenos dóris que cada um transportava. Apenas a título de exemplo, poderemos recordar o incêndio com afundamento do “Júlia IV”, da praça da Figueira da Foz, já com 3000 quintais de pescado a bordo, para uma capacidade de 4300, neste caso sem perda de vidas humanas ou o arrastão “Águas Santas” que encalhou mas acabou por safar-se pelos próprios meios, embora com algumas avarias. Os primeiros barcos da campanha de 1949 regressaram no início de Setembro: o “João Costa”, da praça da Figueira da Foz, e o “Rio Lima”, da de Viana do Castelo. O “Coimbra”, de Leixões, arribou no final do mês e os restantes, mais ou menos por estes dias. Mas não o de João Juff…

A 25 de Agosto, o “Diário ide Lisboa” noticiava: “Naufragou na Terra Nova o lugre ‘Navegante II’ mas a tripulação está toda salva”. E de novo a cor da pele de João Juff alcançava honras de nota: “O barco era comandado pelo capitão Juff Tavares Ramos (o único capitão negro da frota de pesca portuguesa), tendo como imediato João Esteves Naia, ambos de Ílhavo, um motorista, um ajudante e mais 32 tripulantes e pescadores”. Do mal o menos, salvou-se toda a tripulação, recolhida por outros barcos da frota, para além de que carga, pescado e haveres dos tripulantes estavam no seguro. O mesmo jornal, no dia seguinte, dava mais pormenores. O “Maria Frederico” e o “Cova da Iria” deram o apoio necessário. Parte da tripulação regressou a Portugal neste e a restante no navio de apoio ou navio-hospital “Gil Eanes”.

Quanto ao nosso capitão, nunca mais o foi… Faria ainda as campanhas de 1950, 1951 e 1952 no “Maria Frederico” (que naufragou após incêndio a 12 de Julho de 1952 em Virgin Rocks, Terra Nova) e as de 1954 e 1955 no “Dom Denis” (que teria idêntico fim bastante mais tarde, em 26 de Agosto de 1966), todas como imediato, cargo honroso mas certamente injusto para um sábio lobo do mar como ele, detentor de enorme experiência. Em 1955, última vez que ouvimos falar deste são-vicentino, teria uns 64 anos de uma vida dura mas aventurosa.

 

Alguns dos navios em que andou João Juff:

-

“Delães”

 -

“Novos Mares”
-

“Senhora da Saúde”
-

“Maria Frederico”
-

“Dom Denis”
-

Texto de Joaquim Saial, in “Revista Bordo Livre”, nº 154

Ficha de João Juff gentilmente cedida pelo MMI.

Ílhavo, 7 de Março de 2024.

AML

-

domingo, 25 de fevereiro de 2024

Manuel Simões da Barbeira (Capitão Pisco)

 -

Manuel Simões da Barbeira
-

O meu avô Pisco, bisavô dos meus filhos e trisavô dos meus netos…

Manuel Simões da Barbeira (Capitão Pisco) nasceu a 29 de Julho de 1885 e era filho de João Simões da Barbeira, o Pisco, marítimo, e de Joana Correia, de cujo casamento nasceram quatro filhos – Manuel Simões da Barbeira, Francisco dos Santos Calão, David, que morreu muito cedo e uma filha, Nazaré Correia.

Morador na Rua João de Deus, casou com Maria Sacramento Simões, de cuja união nasceu Maria Manuela Sacramento Simões.

Desde que existem algumas provas, o Cap. Pisco comandou, com 23 anos, o iate Mondego, de 1908 a 1911, da praça da Figueira da Foz.


O iate Mondego, in Ilustração Portuguesa
-

Nas campanhas de 1912 e 1913, passou para o comando do lugre Golfinho, da mesma praça.

-

 

O lugre Golphinho, em dia de bota-abaixo, 1912
-

Nas campanhas de 1915 a 1917, comandou o lugre-escuna Figueira, que foi construído em Inglaterra em 1904 e na de 1918, o lugre Voador, da praça da Figueira da Foz.

-

Lugre Voador. Figueira da Foz.
- 

Vivo de referências da vida do meu Avô que quero passar   aos meus filhos e aos meus netos. 

Na campanha de 1919, fora o segundo capitão do famoso lugre-patacho Gazela Primeiro.

-

Lugre-patacho Gazela I
-

Manuel Simões da Barbeira, já na praça de Aveiro, começou por comandar o lugre Silvina, de 1921 a 1927.


O lugre Silvina, na Gafanha da Nazaré
-

Neste ano, abrandemos o ritmo dos navios e das viagens e dediquemos algumas palavras à sua faceta empreendedora.  Foi um dos sócios fundadores da empresa Testa & Cunhas, Lda., constituída em 16 de Dezembro de 1927, enquanto, anteriormente, já tinha feito parte da Empresa de Navegação e Exploração de Pesca, Lda., de Aveiro.

Voltando aos navios, o Capitão Pisco comandou o lugre Cruz de Malta de 1928 a 1937, com uma interrupção em 1932, em que o navio não foi ao bacalhau.

-

O lugre Cruz de Malta, na Gafanha da Nazaré
-

Na campanha de1938, fez a viagem inaugural do lugre de quatro mastros Novos Mares, aí se mantendo até 1942 (inclusive), acabando, então, a sua vida de mar.  

Por informação do Jornal de Notícias de 8.12.1938, tive conhecimento de que o Novos Mares, no dia anterior ao entrar a barra e ao passar a restinga, encalhou, pelo que os restantes cinco navios, que aguardavam fora do porto, ficaram para o dia seguinte. Esse encalhe, felizmente, sem consequências, foi originado pelo lamentável estado da barra, agudizado pela não existência de motor, a bordo. Na campanha de 39 embora um pouco mais tardiamente, o Novos Mares já partiu com o novo equipamento, indispensável.

-

O lugre Novos Mares, à entrada em Leixões
-

Então, depois de muitas procelas, maus bocados, aflições, preocupações, angústia, saudades da família, própria deste tipo de vida rude e dura, ficou em terra, depois de cerca de quarenta anos de mar, apto a, em 1943, iniciar assuas funções de Avô. Adorava-me, estragava-me com mimos, levava-me com frequência à chegada das redes (artes), nas companhas da Costa Nova, s, amiúde, no quadro da bicicleta, à seca, na Gafanha da Nazaré.

Bonacheirão, bondoso, humano e afável, empreendedor e trabalhador, entregou-se, após as fainas do mar, às visitas sistemáticas à firma de que fora um dos sócios fundadores. As lides agrícolas, ali, no quintal do Curtido de Baixo, ocupavam-lhe o resto do tempo. Deixou marcas profundas na minha existência, e, ainda, hoje, guardo, com carinho, alguns dos instrumentos náuticos de seu uso pessoal – em tempo incerto, não saio sem consultar o “seu” barómetro. Curiosa, a diversidade de navios em que embarcou. Daí, não ter sido fácil, mas atractivo e apelativo, articular as informações. Partiu, cedo, numa viagem sem retorno, vítima de uma intervenção à vesícula, malsucedida, em 16 de Fevereiro de 1953, com 67 anos.

-

Ílhavo, 25 de Fevereiro de 2024

-

Ana Maria Lopes

-

 

domingo, 11 de fevereiro de 2024

À procura de um "moliceiro"

 -

Em Outubro de 2009, visitei no Museu Municipal de Aveiro, a exposição “Espreita aqui!... Painéis brejeiros de moliceiros”. Exposição interessante, criativa, que exibia uns tantos painéis brejeiros de moliceiros, dando também relevo `a alguma ferramenta do construtor José Agostinho Henriques de Miranda (1910-1996), do Monte, Murtosa, também conhecido pelo Ti Preguiça.

O que teve de menos bom foi a exibição de um moliceiro mini, de cerca de 7 metros e meio de comprimento, pertença da CMA, muto desleixado – sem mastro, nem vela, nem leme, de pintura lixada, de painéis praticamente ilegíveis. Ainda davam para perceber que fora construído pelo Mestre Manuel Lopes Conde (1919- 1991), cujo estaleiro, já inactivo, ainda visitei na Gafanha do Carmo.

Tal moliceiro, ainda o vi há umas boas dezenas de anos, integrado na exposição filatélica “Lubrapex 72”, bem cuidado, no Museu Santa Joana.

-

Lubrapex 72
-

Depois destes dois episódios, nada mais soube dele. Eis senão quando, na TV, em fins de Janeiro, fui confrontada com umas imagens da inauguração de “Aveiro 2024. Capital Portuguesa da Cultura”, que me seduziram. O fundo azul forte das paredes que me lembraram a década de 90, do Museu de Ílhavo, em fundo igualmente azul. Além disso, dois belos quadros, que me pareceram ser de Lauro Corado. E, como objecto central da sala o “tal moliceirinho”, que já vai tendo história, desta vez, muito cuidado.

Ontem fui tirar “as coisas a limpo”. O moliceiro era o imaginado, construção do Mestre Conde, em 1962, os quadros, confirmei que eram 2 belos óleos de Lauro Corado (1908-1977), “Recanto lagunar” e a “Caldeirada”.

Estas peças e mais algumas fazem parte da exposição permanente do Museu da Cidade. A exposição temporária “Sal de Aveiro. Sal do Mundo”, patente até 31 de Março, não me despoletou assim tanto interesse, por agora. Fica para a próxima.

Vamos às imagens, que são mais elucidativas que as palavras.


Aspecto geral da sala principal
-

MESTRE MANUEL CONDE. 1962
-

LÁ BAMOS CUM DEUS
-

Ó MARIA, VAMOS Ó VIRA
-

 

LÁ VAI A RITA PEIXEIRA
-

Recanto lagunar
-

A caldeirada
-

Ílhavo, 11 de Fevereiro de 2024

Fotos de Paulo Godinho

Ana Maria Lopes

-

sexta-feira, 2 de fevereiro de 2024

"Filinto - O poeta amargurado", no palco da CCI, esgotou a lotação

-

Segundo o Diário de Aveiro de 2.2.2016, há 8 anos, foi perante uma casa cheia, ao final da tarde, que o Grupo de Teatro Ribalta estreou a peça «Filinto – O Poeta Amargurado». O espectáculo, que decorreu na Casa da Cultura de Ílhavo (CCI) e que é baseado num texto da autoria de Senos da Fonseca, surpreendeu o público presente, que reivindica, agora, por novas apresentações, noutras localidades da região ou do país.

A peça, que retrata a vida de Filinto Elísio – um dos mais importantes poetas do Neoclassicismo português e com raízes em Ílhavo (filho de pais ilhavenses) – contou com encenação de José Júlio Fino e subiu ao palco com o apoio da Junta de Freguesia de São Salvador.

Considero que as expectativas foram alcançadas, uma vez que já há agora muita gente a saber quem foi Filinto Elísio, destacou o autor Senos da Fonseca, depois da estreia da peça – não obstante o mérito das suas obras, o poeta foi caindo no esquecimento. Foi bonito o esforço de todos e a encenação foi excelente, frisou ainda o autor do texto, a propósito do trabalho conseguido pela equipa do grupo Ribalta.

-

Esta imagem de uns carinhosos ílhavos seduziu-me…

E encantou-me…

Desde que conheci a peça de teatro, já pelo Verão de 2014, relativa à biografia de Filinto, manifestei uma especial predilecção pela jovialidade, pelo carinho, pelo romantismo, pela coragem das personagens deste I acto e pela linguagem extremamente bem utilizada, relativamente às manobras que conduziram o jovem par, numa singela bateira, até Lisboa, à procura de vida melhor e numa tentativa de se «pisgar» de Ílhavo, dada a gravidez prematura da Maria Manuel. Esta, saltitante, meiga e enamorada, abraçada ao pescoço do Manuel Simões, seu amado, saltitava entre a preocupação e a satisfação da vida que tinha dentro de si.

Com o amadurecimento nas subsequentes leituras, fui encontrando outras belezas textuais e interpretativas nos outros dois actos, correspondentes a fases distintas na vida do amargurado poeta.

Depois do segundo acto, todo palaciano e bem conseguido, pareceu-me que o terceiro se tornou um pouco mais pesado, apesar de surgirem uns laivos de comicidade, resultante da interpretação adequada de algumas personagens, que, intencionalmente, atenuavam a dureza do contexto.

Resultou muito bem a economia cénica de meios, como convinha, com a sobriedade e ligeireza com que os diversos cenários foram mudados.

O efeito de som e luzes também se tornou extremamente agradável ao olhar e ouvir dos espectadores, embevecidos e esforçados para captar o mais possível do espectáculo, em silêncio, entrecortado por aplausos.

O guarda-roupa, na sua simplicidade, mas bem adaptado à época e condição social das diversas personagens, esteve perfeito, bem como a maquilhagem.

Os artistas, além de amadores, jogaram «sem rede», pois o palco não tinha ponto e o texto, na sua diversidade, não era fácil.

O que achei menos bom foi a definição e o vigor de algumas vozes, por condição, sobretudo, femininas, que não estavam direccionadas para a plateia, como a encenação exigiria.

E onde foi mais notório este aspecto, pelo menos, tendo em conta a minha localização na sala, foi no I Acto. Mas, não foi por isso que desgostei menos dele.

Um par enamorado, apaixonado, perante uma gravidez anunciada, não grita, não clama, mas sussurra ternamente, numa voz doce e melíflua.

Crítica construtiva, como deve ser a de professora, que sempre me acompanha, além de outras profissões que fui tendo pela vida fora.

-

Ílhavo, 2 de Fevereiro de 2016/2024

 

Ana Maria Lopes


domingo, 28 de janeiro de 2024

Rotas lagunares. O "mercantel" no carreto

 -

Se bem que ao falar do mercantel ao serviço do transporte de sal (saleiro), do peixe e de passageiros, sempre cargas, vamos acabar a missão do mercantel como "o burro de carga da ria", no carreto de tudo e de mais alguma coisa.

Já desde 1693 data em que por alvará régio concedido por D. Pedro II, começou a ter lugar todos os dias 13 de cada mês, a Feira da Vista-Alegre vinha dos mais variados pontos da ria, mensalmente, uma imensidão de barcos alimentando com produtos transportados no seu bojo a intensa actividade das trocas que se faziam na referida feira, uma das mais importantes da região. Visitavam aquele sítio do canal do rio Boco, não só gentes das regiões vizinhas, como também, estranhos interessados na quantidade de produtos. Além do sal e do peixe, na "Feira dos 13" havia uma grande diversidade de produtos: lenha, animais, tecidos, artigos de artesãos locais, tamancos, gabões, arados, que justificavam grande procura. A maioria destes produtos, usava os mercantéis, pelo canal do rio Boco, para seu transporte.

Desde 1824, no mesmo local onde se realizava a feira, nasceu e foi implementada a Fábrica da Vista-Alegre.*

Para os seus fornos eram trazidos toros com muita frequência, mas o caulino utilizado na produção da porcelana, vinha de Ovar, pela ria, sempre que a necessidade obrigasse. Os objectos de barro ovarense também se vendiam muito pela região, quer na feira dos 13, quer em outras situações.

-

 
Após 1824, descarga nas traseiras da Fábrica da VA
- 

Vinhos, trigo, cereais, ervagens, gado materiais artesanais, tudo, os mercantéis transportavam, em rotas lagunares.

Na Gafanha da Nazaré, o carregador lagunar servia para tudo. Além de transportar madeiras e operários para os estaleiros, transportava bacalhau de navios mais afastados para o cais, junto às secas, junco, lamas para as marinhas, sacos de lona com as roupas dos tripulantes de navios de bacalhau. Vi, realmente visto, à chegada do n/ motor Novos Mares, depois de o ter ido receber e filmar à boca da barra, na campanha de 1964, atracarem a bombordo e a estibordo, dois mercantéis, para os quais eram descidos os tais sacos de lona que seriam distribuídos, muito mais rapidamente, pela Torreira, Bico da Murtosa, Bestida, Pardilhó, Válega, Ovar.

-

Gafanha da Nazaré – transportes diversos
-

Pedra para a construção do conhecido "triângulo" na entrada da barra, pelos anos 30 de século XX, de costado bem no fundo, lá a suportavam.

-

Barra – Transporte de pedra para o "triângulo"
-

De Ançã e, sobretudo, de Eirol – pedra de Eirol, presente nas obras da barra, monumentos, muralha de Aveiro, Farol e quejandos, mais uma prova fotográfica curiosa.

-

Eirol – Ponte da Rata
-

E, por ora, f1quemos por aqui…já chega. Outra rota diferente se seguirá, a seu tempo.

 

Nota *Sobretudo, relativamente a este assunto foi consultado o livro de Senos da Fonseca, Ílhavo – Ensaio Monográfico Séc. X ao Séc. XX, pp. 215-216.

-

Ílhavo, 28 de Janeiro de 2024

-

Ana Maria Lopes

-